outubro 22, 2012

Poesia


A triste história do zero poeta
Numa certa conta havia
 um zero dado à poesia
 que tinha um sonho secreto:
 fugir para o alfabeto.

 Sonhava tornar-se um O
 nem que fosse um dia só,
 ou ainda menos: só
 o tempo de dizer: «Oh!»

 (Nos livros e nas selectas
 o que mais o comovia
 eram os «Ohs!» que os poetas
 metiam nas poesias!)

 Um «Oh!» lírico & profundo,
 um só «Oh!» lhe bastaria
 para ele dizer ao mundo
 o que na alma lhe ia!

 E o que na alma lhe ia!
 Sonhos de glórias, esperanças,
 ânsias, melancolia,
 recordações de criança;

 além de um grande vazio
 de tipo existencial
 e de uma caixa que o tio
 lhe pedira para guardar;

 e ainda as chaves do carro
 e uma máscara de entrudo...
 Não tinha bolsos, coitado,
 guardava na alma tudo!

 A alma! Como queria
 gritá-la num «Oh!» sincero!
 Mas não passava de um zero
 que, oh!, não se pronuncia...

 Daí que andasse doente
 de grave doença poética
 e em estado permanente
 de ansiedade alfabética.

 E se indignasse & etc.
 contra o destino severo
 que fizera dele um zero
 com uma alma de letra!

 Tanta ambição desmedida,
 tanto sonho feito pó!
 E aquele zero dava a vida
 para poder dizer «Oh!»...

(in Pequeno Livro da Desmatemática) de Manuel António Pina

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